No ano de 1897, o psicólogo social Émile Durkheim publicava a importante obra “O Suicídio”, relacionando o tema e seu aumento, com o grau de anomia das sociedades. Quando uma sociedade começa a se tornar “anômica”, ela passa a expressar uma crescente crise em sua escala de valores. A perda dos valores fundamentais, como o “Bem”, o “Belo” e a “Verdade”, que constituem a correta estrutura da realidade e o saudável ordenamento da inteligência humana, leva o homem a um progressivo declínio moral e, com o mesmo, a um aumento do seu sofrimento psicológico e social.
Em resumo, a perda do sentido moral e do senso de correto leva o homem a um embotamento de sua capacidade de entender a realidade. A imoralidade nasce da relativização dos valores éticos e estruturantes ao homem e tem como consequência o enfraquecimento da consciência, o declínio moral e, por conseguinte, o embotamento psicológico. O homem passa, assim, a não medir a consequência de suas ações, tornando-se um ser inconsequente e inconsciente, enfraquecido em sua vida interior. Esse rebaixamento da consciência na escala pessoal, quando transposta para a social, corrobora uma perda progressiva de sentido, pois o sentido é o que determina o grau de saúde mental de cada indivíduo, nascendo de sua interiorização e fidelização aos valores vitais. Valor = vida; perda do valor = morte, decomposição do tecido social.
Anomia é, portanto, uma perda dos valores que comunicam o bem e a vida a uma determinada cultura e sociedade. É, basicamente, a incapacidade de dar nomes, de identificar o certo do errado, o que é bom do que é ruim, o que é saudável do que é doentio. Quando a sociedade perde essa capacidade de nominar, o suicídio passa a vitimar principalmente sua população mais jovem, reconhece Durkheim.
Em artigo publicado no jornal O Globo, em 24 de abril de 2017, a Dra. Ana Escobar, respeitada médica pediatra, chamou a atenção para um significativo aumento (27,2%) na taxa de suicídio entre jovens de 15 a 29 anos entre o final da década de oitenta e o ano de 2014. Portanto, nesse contexto, podemos confirmar a tese de Durkheim de que a sociedade brasileira paulatinamente foi se tornando anômica com a perda progressiva dos valores fundamentais.
De fato, a cultura brasileira apresenta males sociais específicos ao desenvolvimento da nação, relativos a desigualdades sociais e políticas públicas adoecidas, que configuram uma enferma dissociação entre Estado e sociedade. O espírito da sociedade brasileira atual caracteriza-se por uma ausência de valores sólidos e um enfraquecimento moral progressivo que impacta diretamente a saúde mental da população. Soma-se a isso uma carência de sentidos vitais para se viver uma vida com propósito e crescimento psíquico.
O suicídio, não nos iludamos, não é um mal psicológico apenas que afeta alguns indivíduos relativamente distantes de nossa experiência cotidiana. Ao contrário, é um contágio social crescente, em razão de estarmos atualmente instalados em uma cultura de morte. E, diante de uma cultura de morte, que fomenta falsos valores indutores de falsas identidades, podemos esperar pela vida?
Vejamos algumas características dessa cultura de morte que se desenha em tons cada vez mais sombrios e que se apresenta como demanda para o olhar dos profissionais de saúde mental:
• Cenário cultural caracterizado pelo hedonismo, pela busca do prazer imediato e pela alienação de uma felicidade de crescimento humano pelo progresso das virtudes intelectuais e morais do homem. Com isso perde-se o sentido da responsabilidade nas relações, veículo de formação da consciência em cada indivíduo.
• Padrão cultural/comportamental competitivo e comparativo, em vez de solidário e cooperativo, manifestando-se nas organizações de trabalho, nos núcleos familiares e nas diversas condições de ensino. Vivemos na era do narcisismo competitivo que sufoca as possibilidades para o florescimento de vínculos de amor, os únicos capazes de oferecer sentido de desenvolvimento e segurança ao ser humano. Uma sociedade narcisista é, acima de tudo, aquela que oferece aos seus indivíduos a experiência do vazio existencial, da solidão emocional e do pânico em relação ao fracasso, que caracterizam as chamadas “neuroses noogênicas”, as neuroses do vazio espiritual e moral do homem moderno como tão bem reconheceu e explicitou o psiquiatra vienense Viktor Frankl (1905/1997), fundador da logoterapia.
• O amor incondicional, necessário ao ser humano em seus primeiros anos de desenvolvimento, em especial no seio familiar, está desaparecendo. Em seu lugar, a lógica do sucesso condiciona o valor dos indivíduos a um território instável, unilateral e alienante. O mundo que se apresenta para a criança, em sua cultura familiar, e que espelha a cultura social vai se tornando soturno, ameaçador e problemático. Durante toda a sua vida acadêmica, do ensino fundamental até o superior, o indivíduo não encontra ambientes propícios ao seu desenvolvimento emocional. Ele é simplesmente soterrado por informações sem compreensões, muitas vezes inúteis à sua singularidade, sendo cobrado, em vez de ser estimulado, dentro de condições emocionais generalizadas e massificadas.
• O compromisso com o excesso de informações colapsa, por sua vez, o entendimento psicológico das instituições de ensino a respeito da singularidade de cada educando. Testemunhamos a morte da singularidade, o elemento mais sagrado de cada indivíduo e que lhe confere senso de pertinência e ajuste em relação a si mesmo. Quando chega à adolescência, percebe-se que o indivíduo vive sobre uma base de valores narcisistas, no lugar dos amorosos capazes de lhe comunicar a vida. Sem sustentação para seu valor humano fundamental, o jovem, ao se deparar com suas possibilidades de “fracasso”, tomba como um castelo de cartas agitado pela mais leve brisa.
• Nossa cultura atual reforça, em nossos jovens, apenas as condições e conquistas externas como ser bem-sucedido profissionalmente, ser bem aceito e elogiado nas relações por suas conquistas e ser o melhor em tudo o que faz. Qualquer crítica suscita um grande abalo, qualquer rejeição pode se tornar sinônimo de morte; e a vida humana, entregue a determinismos tão pobres, inconscientes, inconsistentes e nervosos, não é capaz de se conectar com seu potencial em direção à sua realização consciente, permanecendo imaginariamente numa espécie de túnel escuro e sem saída. E, nesse contexto, o suicídio passa a se configurar como uma alternativa de alívio.
• Somado a isso, o excesso de extroversão, de atividades, de informações muitas vezes inúteis, aniquila pelo sufocamento a necessária virtude da introversão. Formam-se, então, indivíduos “desplugados” de si mesmos, sem contato com seu mundo íntimo. Ocos, vazios, carentes de autoaceitação e desconfortáveis com quem são porque não foram estimulados a olhar para dentro e se conhecerem, passam também a não saber o que verdadeiramente querem por meio dos seus verdadeiros potenciais e aptidões. Para muitos desses jovens, o mundo não é um lugar para ser explorado curiosamente, mas, sim, conquistado em meio a receios e temores ansiosos.
Nossos jovens têm compensado a falta de identidade, sua “anomia pessoal”, por meio da satisfação de prazeres instantâneos, reforçados por uma sociedade de consumo que substitui o valor do ser pela lógica do ter. Incapazes de conferir propósito e sentido de conexão para suas vidas, vivem na busca de um prazer compensatório, jamais das descobertas conscientes. Resumindo, tal indivíduo primeiro se perde ou jamais encontra sua singularidade, sentindo-se excêntrico, fora do seu centro. Há, assim, uma desconexão de si mesmo pela própria validação a todo custo por parte dos outros. Em seguida, busca apoio em prazeres vazios que não autorrealizam, ficando refém de compulsões e apetites insaciáveis quase sempre compensatórios. Por fim, sentindo-se tão vazio e desplugado de sua identidade singular, prefere morrer.
Concluindo, é a nossa cultura que faz os nossos jovens não quererem mais viver e é este padrão cultural endereçado à morte que precisa morrer, para que cada indivíduo possa voltar a um modo de viver caracterizado por sentido, solidariedade, compreensão e propósito. Como Carl Jung, eminente psiquiatra do último século, afirmou: “Somente o que é significativo pode salvar!”
Tendo em vista esse sombrio cenário sociocultural reforçador do suicídio, o que podemos fazer para deter e inibir esse processo?
De imediato quatro perspectivas que precisam se mesclar:
1- Ajuda profissional: de psicólogos, terapeutas e psiquiatras sensíveis a esse cenário mais amplo no auxílio em direção à maior interioridade dos indivíduos e aceitação de suas singularidades. Profissionais não apenas imbuídos de técnicas, mas de atenção amorosa acima de tudo.
2- Literatura: ler auxilia os indivíduos a se religarem aos valores mais profundos do viver. Necessitamos de uma cultura literária que faça sentido e comunique propósito e resgate dos valores intrínsecos e essenciais!
3- Arte: uma experiência artística, um verdadeiro contato com a arte que comunique presença de sentido e que não choque as mentes por sua ausência de sentido, pois, pela arte vinculada ao “belo”, ao que faz sentido e comunique um valor, o indivíduo se inspira e enriquece seu olhar em direção à vida.
4- Espiritualidade: é justamente na espiritualidade que encontramos o endereço residencial da verdadeira identidade do homem. Um homem religado contrasta radicalmente de um homem desligado.
Para o jovem de hoje sobreviver, ele precisa voltar a aprender com o passado, a fim de continuar seus passos em direção ao futuro. E, para superarmos o presente estado das coisas, precisamos voltar ao passado clássico identificado a valores fundamentais, para, então, prosseguirmos com mais inspiração em direção ao futuro de modo realmente progressista. Progredir é acima de tudo conservar e conservar produz as condições para se progredir. O homem moderno cerrou o galho do seu “passado” em que estava sentado e caiu no vazio. Assim como uma árvore que perde suas raízes morre, o homem moderno, por querer perder suas raízes nascidas da sabedoria grega e dos valores cristãos, perdeu-se em direção à sua valorização. Não houve um acúmulo para o progresso e, como um indivíduo que perde suas memórias e vê-se no desamparo, o homem moderno rompeu consigo mesmo, buscando muitas vezes no suicídio uma saída alienante para sua falta de sentido no viver.
Autor: Dr. Vitor Santiago Borges
IMPI–Instituto de Medicina e Psicologia Integradas
RT: Dalmo Garcia Leão CRM 4453
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