Kyara Lis é um bebê que nasceu com uma doença rara: a Atrofia Muscular Espinhal, mais conhecida como AME. Uma doença genética rara, progressiva e possivelmente mortal, que afeta a capacidade de realizar ações normais como caminhar, comer e até respirar. Ela foi diagnosticada aos 10 meses de idade pela equipe do Hospital Sarah Kubitschek. A partir de então, travou uma disputa acirrada, apesar da idade, para conseguir arrecadar fundos para a compra do remédio Zolgensma, o medicamento mais caro do mundo. Foi assim que nasceu a campanha #CureaKyara.
Conhecida pela população brasiliense e também por grande parte do país, a pequena Kyara Lis nasceu em 02/08/2019 e é a caçula de quatro irmãs. Desde muito cedo ela não se desenvolveu muito bem, tanto que nos primeiros meses de vida já tremia as mãos como efeito colateral da doença. A AME evoluiu desde cedo na Kyara, mas os pais e os médicos acreditavam ser apenas fraqueza muscular.
Após constatar a impossibilidade de endurecer as pernas e ficar em posições normais para um bebê, os pais marcaram uma consulta de emergência com a pediatra. Imediatamente a médica encaminhou o caso para o Hospital Sarah Kubitschek, que deu o diagnóstico de AME com apenas uma semana de tratamento.
Reação ao diagnóstico
A notícia da doença pegou todos de surpresa, pois, até então, eles achavam que a fraqueza muscular era proveniente de algo mais brando. Kayra, a mãe de Kyara Lis conta que ficou tão assustada que não parava de chorar, tamanho o desespero.
“Por dois dias, eu chorei sem parar. Eu, meu esposo, minhas outras filhas, nós choramos muito. E aí no segundo dia à noite uma cunhada minha me falou que existia o Zolgensma, que algumas crianças tinham tomado fora do país, e que havia algumas crianças em campanha no Brasil por esse remédio. Quando fui dormir, de madrugada, depois de chorar muito, fui ler sobre esse remédio, e vi que era o mais caro do mundo. Assustei, mas eu pensei ‘Se crianças conseguiram esses remédios por testes e por campanha, não sei como, mas nós vamos conseguir esse remédio pra Kyara’”, afirma a mãe da menina.
No dia seguinte a luta começou. Kayra, ainda pela manhã, chorou mais um pouco, mas logo levantou-se e começou a pensar em alternativas. A partir de então, ela pesquisou os países com maior avanço no tratamento e possível cura da AME.
#CureaKyara
Ainda abalada por conta de toda a situação, a ajuda da cunhada e de uma das amigas foi fundamental para o início das campanhas para arrecadação de dinheiro. As duas se reuniram com demais amigos da família para bolar uma estratégia e, então, uma delas foi à casa da Kayra para mostrar o que idealizaram.
O resultado não poderia ser diferente: dois dias depois, todos os amigos e envolvidos na ideia se reuniram por videoconferência e deram início à campanha #CureaKyara. O que era para ser uma iniciativa de amigos e família foi tomando proporções cada vez maiores.
A advogada Kayra Rocha ficou surpresa ao perceber que a campanha estava crescendo de forma exponencial num curto espaço de tempo. Ela conta que pessoas que nem conhecia estavam doando e torcendo pela cura de sua filha.
“A campanha foi atingindo pessoas que nós nunca vimos na vida. Que choraram pela Kyara, que lutaram e divulgaram como se fosse tio e avós. Artistas se envolveram a ponto de vir à nossa casa. Ela ganhou violão do J Quest. Gian e Giovani vieram à nossa casa fazer uma live solidária todinha pra Kyara. Vários sertanejos postaram sobre ela. Influencers e artistas globais também vieram falar comigo”, disse Kayra.
A estudante de psicologia Andréa Araújo ficou sabendo da arrecadação para a compra do remédio e ajudou doando uma quantia à família. O fator decisivo foi quando ela leu “E se fosse SUA filha, neta, irmã, sobrinha… o que você faria?! Eu escolhi lutar pela vida da minha filha”. A afirmação deu a ela a certeza da doação.
“Uma mãe lutando até o último fôlego para salvar a filha me fez querer ajudar, ainda que com pouco. De alguma forma, fazer parte disso, me deu ainda mais fé na humanidade”, afirma a estudante.
AME
A Atrofia Muscular Espinhal (AME) é uma doença genética rara que causa a morte de algumas células do sistema nervoso, mais conhecidas como neurônios motores. Dessa forma, a pessoa não possui mais total controle dos músculos. Por fim, a degeneração das fibras musculares proveniente da morte dessas células causa a atrofia.
Já que não são estimulados por células nervosas, os músculos acabam atrofiando com o tempo. Por isso, os neurônios motores são tão importantes para os seres humanos. Quando não utilizados, há a fraqueza muscular – sintoma que os pais de Kyara perceberam já nos primeiros meses de vida da filha. A maior parte dos neurônios motores que controlam os músculos estão localizados na medula espinhal. Daí o nome: Atrofia Muscular Espinhal.
A doença é grave e deve ser acompanhada desde cedo. Assim que os pais souberem da condição do filho, devem encaminhá-lo a um especialista. Kayra desabafa ao relatar que o SUS fornece o medicamento Spinraza – que desacelera os sintomas da doença – apenas para a AME Tipo 1. Kyara, porém, possui AME Tipo 1 em evolução para o Tipo 2, e não entra no rol de pacientes aptos a receber o remédio.
Apesar de a AME Tipo 1 ser mais severa, a diferença para a escala do Tipo 2 não é tão expressiva. Dessa forma, com o decorrer do tempo, as falências dos neurônios motores podem comprometer os movimentos de pessoas como a bebê Kyara. Em alguns casos, o dano aos movimentos pode vir em questão de anos, em outros, a fraqueza total de músculos aparece já nos primeiros meses.
Palavras da especialista
Muitas pessoas fizeram parte da luta de Kyara contra a doença. Uma delas, em especial, a acompanhou por alguns meses para ajudar no tratamento da AME. Aos nove meses de idade, Kyara teve sua primeira consulta com a neurologista infantil Gláucia Oliveira, que veio a se tornar um personagem importante na história da criança.
A drª Gláucia alerta que o tratamento, já nos primeiros meses de vida de Kyara, foram fundamentais. De acordo com a especialista, quanto mais se demora para iniciar um tratamento adequado, maior será perda de marcos do desenvolvimento da criança.
Ela relembra uma característica presente em toda a família durante o tempo em que atendeu Kyara: a determinação. A médica pôde sentir que eles permaneceram firmes mesmo com tantas dificuldades ao redor, e essa persistência foi um fator decisivo no tratamento da doença.
“Claro que para família é um diagnóstico difícil de receber. Porém permaneceram-se determinados em fazer o melhor possível para a vida da filha: atendimento multidisciplinar diariamente e corrida incansável para recebimento das medicações. A esperança sempre foi, e ainda é, uma importante aliada em busca do tratamento mais rápido e adequado”, relata Gláucia.
Apesar do remédio Spinraza – que é distribuído pelo SUS apenas para pacientes do tipo mais severo da AME – ajudar no tratamento, ele apenas retardada a evolução da doença e tem que ser tomado para o resto da vida. Ainda assim, eles conseguiram o remédio judicialmente pelo plano de saúde, mas contam que ainda não é o ideal. Sendo assim, o objetivo principal da família e médicos sempre foi a aplicação do Zolgensma.
Por fim, a neurologista infantil destaca que a doença deve ser tratada o quanto antes para que a criança tenha uma melhor qualidade de vida. O medicamento, apesar de ser difícil de adquirir, é fundamental.
Disputa contra o governo
Apesar do sucesso nas campanhas de arrecadação, a família conseguiu arrecadar pouco menos da metade. O que já representa um valor muito alto, visto que o Zolgensma é o remédio mais caro do mundo. Ele custa cerca de 2 milhões de dólares, o que representa, na cotação atual, o montante de aproximadamente R$ 12 milhões.
A mãe da pequena Kyara Lis entrou na Justiça para ter o direito de receber do Ministério da Saúde o valor restante para a compra do medicamento. Após decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ser favorável ao pedido, a pasta alegou impossibilidade técnica e jurídica para justificar a recusa.
A negativa da pasta sobre a compra do Zolgensma só prejudicou a chance de melhoria integral da filha. Durante todo o embate, Kayra só conseguiu pensar em quantas crianças morreram por não ter acesso ao medicamento.
“Tem quatro meses aproximado que eu soube do diagnóstico da Kyara, que nós iniciamos a campanha e conquistamos o medicamento. Mas eu já vi, só nesse tempo, quatro crianças morrerem. Isso só no meu conhecimento. Então, isso é muito triste, porque muitas crianças não conseguem esperar uma decisão judicial”, desabafa Kayra.
Após muita luta judicial e apelo popular, o Ministério da Saúde decidiu não recorrer mais da decisão do STJ e determinou o repasse do restante do valor à família da pequena Kyara. Com isso, a vitória foi muito comemorada entre a família e todas as milhares de pessoas que acompanharam toda a trajetória de Kyara. Finalmente, os R$ 12 milhões foram arrecadados.
Dinheiro na conta. E agora?
Mesmo após juntar o dinheiro, as dificuldades não pararam. O próximo passo foi achar um hospital que aplicasse o Zolgensma. Eles encontraram, mas era em Boston e todos os custos de viagem tornariam ainda mais difícil. Até que chegou uma boa notícia: o Hospital Pequeno Príncipe aceitou aplicar o medicamento.
Após consultas e um exame que a indicou como apta a receber o Zolgensma, o próximo passo é ir para Curitiba. A advogada Kayra conta que é a etapa mais importante da luta.
“Ela está apta para o Zolgensma, agora eles emitem pra gente a fatura. Nós vamos pagar e aí começam os trâmites de importação. Acredito que até a primeira quinzena de novembro a Kyara deve estar tomando esse medicamento em Curitiba”, relata a advogada.
Por fim, Kayra agradece toda a ajuda que teve até aqui. A advogada, após toda a luta para proteger o direito à vida da própria filha, respira mais calma. Um pouco mais aliviada em virtude da data de aplicação do Zolgensma estar próxima, ela reflete sobre toda a trajetória de sua filha e como o amor de todas as pessoas ajudou a família nesses últimos meses.
“Ela atingiu corações que nós nunca imaginávamos. Nós enxergamos um amor muito grande de Deus em toda essa história. Nós pudemos vivenciar um amor que nunca imaginávamos mesmo que existia dessa forma. E é muita emoção saber que tão breve nossa filha vai tomar esse medicamento que vai impedir o avanço da doença nela”, afirma Kayra.
Por fim, ela faz um apelo às autoridades, para que o acesso aos remédios para a AME seja menos burocrático. Kayra deixou uma última mensagem que resume bem a situação de sua filha e outras várias crianças “Quem tem AME, tem pressa”.