Educação

Coronavírus: Alunos da rede pública planejam reprovar de propósito para ‘aprender de verdade’ em 2021

BBC News Brasil realizou entrevista com 15 adolescentes que planejam repetir o ano porque dizem não aprender os conteúdos das matérias por meio do EaD

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Foto: Banco de imagens

Para eles, a distância tem dificultado tanto o aprendizado, que vale mais refazer todo o ano em 2021 – mesmo sem saber qual será o estado das coisas e das aulas.

“Não é que eu vou fazer de novo, eu só vou fazer, porque esse ano eu não fiz nada”, explica Júlia Almeida, estudante de 17 anos do terceiro ano do Ensino Médio de uma escola estadual em Belo Horizonte, Minas Gerais.

Ela publicou um vídeo em sua conta de Instagram intitulado “Por que vou reprovar em 2020”. O vídeo teve mais de 120 mil visualizações, e 900 comentários, com a maior parte das pessoas concordando com seus argumentos e dizendo também não estar entendendo muita coisa com o EAD.

Muitos admitiram ter tido a mesma ideia de repetir de ano.

“Em todo 2020, tive 4 dias de aulas, e olhe lá. [No ensino a distância, são] vinte minutos de aula por dia, sendo que na escola eu tenho 40 minutos (cada aula) e 5 aulas por dia. Não dá para repor. É só colocar na balança”, diz ela. “Eu sou privilegiada, tenho acesso a TV e internet. Mas tenho colegas que não têm acesso à televisão, imagina à internet.” 

“Não aprendi uma gota de matéria em 5 meses. Em 4 meses, não vou conseguir recuperar. Não é suficiente para aprender a matéria toda de um ano. O Enem que vou fazer em janeiro vai ser por teste de resistência, porque eu não tenho condições de fazer. Não é que vou tomar bomba, eu só vou realmente fazer meu terceiro ano, ano que vem. Aprender de verdade para ter condições de fazer um Enem decente, digno.”

Despreparo

A BBC News Brasil falou com 14 jovens da rede pública que, como Júlia, já estão certos de que vão reprovar ou estão considerando a possibilidade. Todos dizem que não têm conseguido aprender por meio da aprendizagem remota.

Os do terceiro ano do Ensino Médio também citam o despreparo para fazer o Enem (Exame nacional do Ensino Médio), que acontecerá em janeiro, e é um dos principais meios de ingresso no ensino superior no país). Alguns afirmam desejar fechar o ciclo escolar presencialmente, com os amigos.

Os adolescentes com quem a reportagem falou estão em todo o Brasil: são estudantes no Ceará, Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2019, do IBGE, mais de 87,4% dos alunos do ensino médio estudam na rede pública.

Em março, as aulas presenciais foram suspensas em todo o país por causa da pandemia do coronavírus. Desde então, as redes públicas têm feito adaptações para aulas remotas. Cada Estado o fez de forma diferente.

No Twitter, uma busca pelo termo “EAD” (Ensino a distância) resulta em diversos tuítes de jovens reclamando do aprendizado remoto.

“Se eles não cancelarem essas aulas, eu vou reprovar de propósito. Não dá mano, tá impossível estudar via internet”, diz um usuário. “Sim, eu não tô fazendo as atividades online para reprovar de propósito e ter um terceiro ano de verdade”, diz outro. “Prefiro reprovar de propósito e refazer o 3º do que passar e não saber nada”, escreve um terceiro.

‘Não tem jeito’

Acordar, pegar o ônibus e ir para a escola em Montes Claros, Minas, era uma rotina de que Marcelo* gostava. “Sinto falta principalmente das aulas presenciais e dos colegas”, diz ele, que mora com o pai, a mãe e três irmãos.

“Nas aulas presenciais a gente tinha atenção do professor em si, ele estava lá, explicava matéria. Na EAD, não são todos os professores que têm contato com os alunos”, reclama.

Marcelo diz estar fazendo o que pode, assistindo às videoaulas e fazendo as atividades dadas no dia, “e é muito difícil”. Mas já sabe que quer reprovar e refazer o ano.

“Desde quando começou essa pandemia, eu falei: ‘Não tem jeito. Não tem como passar de ano com o EAD’”, diz. 

“No caso, não seria reprovar, seria fazer mesmo o segundo ano. A gente não está fazendo o segundo ano, nem sei o que a gente está fazendo. Todos os meus amigos estão com dificuldade, todos reclamam, ninguém está entendendo nada das matérias”, acrescenta ele.

As de exatas, como física, química e matemática, são as mais difíceis de entender, diz Marcelo. “Podemos assistir aos vídeos quantas vezes quiser, mas mesmo assim não adianta.” O nome do estudante é fictício.

Revisão de conteúdo

A Secretaria de Estado de Educação de Minas desenvolveu apostilas chamadas de PETs (Planos de Estudos Tutorados). Além disso, oferce teleaulas exibidas na televisão e um aplicativo para celular.

Em nota, a secretaria afirmou que, no retorno das atividades presenciais, aplicará “uma avaliação diagnóstica em toda a rede, que servirá para traçar o plano de revisão de conteúdo individualizado para cada aluno”. Também diz que o acesso dos alunos aos materiais ofertados é alto (leia mais abaixo).

Para a pedagoga Sheyla Alves Xavier, mestre em educação pela Universidade Federal de Pernambuco e profissional da educação infantil da rede pública em Recife, os alunos da rede pública estão com discursos desmotivados em relação ao ano letivo não só porque estão sem aulas presenciais, mas “pela situação das famílias no contexto da pandemia”.

“Muitos pais estão sem emprego, passando necessidades. Alguns alunos realmente não estão se sentindo motivados para continuar, acreditam que esse ano é um ano perdido”, diz.

“Principalmente os alunos do terceiro ano. Fazemos todo um planejamento visando o Enem, e agora passamos tanto tempo sem aula presencial e essa prova vai acontecer praticamente um mês depois do tempo em que ocorreria num contexto normal, sem pandemia”, diz. “E os alunos de escola pública continuam sem aula presencial e com acesso muito limitado às aulas remotas.”

Para ela, educação a distância é uma modalidade de educação que deve ser “pensada com seriedade, não como paliativo ou improviso, como estamos fazendo, de qualquer maneira”. “Sem contar que os alunos sem acesso a esses equipamentos estão sem aula. E se estão sem acesso à educação, estão sem ano letivo.”

“Se os órgãos públicos não enxergarem esse ano de outra maneira, os alunos vão tomar a frente e fazer por conta própria.”

Já Cláudia Maria Costin, professora universitária e diretora do centro de políticas educacionais da Fundação Getúlio Vargas, pondera que as escolas não tinham como ter um plano de contingência para uma hipótese como essas – uma pandemia.

“Foi realmente um desafio grande, no caso brasileiro maior ainda porque uma parte importante das casas não tem conectividade e se tem é por meio de celular. Mesmo nessas condições, eu não tenho uma visão tão negativa assim. Houve aprendizado do começo da pandemia das redes públicas de como lidar com a situação.”

As respostas dos Estados e municípios variaram muito, mas “não foi um desastre frente às condições que tinham”, na opinião dela.

Para a especialista, a repetência pode não ser uma boa saída porque o estudante brasileiro já é mais velho do que a idade correta para sua série. “Se ele envelhece mais, as chances da família tirá-lo da escola para botar para trabalhar aumentam de forma expressiva”. Significa, portanto, que poderia aumentar a evasão escolar, uma preocupação dos especialistas em relação ao ensino público na pandemia.

“Se eu fosse pai dos alunos, teria temor. Recomendaria continuar o ensino a distância, fazê-lo com suas insuficiências. E as escolas depois montam um sistema de recuperação de aprendizagem, vendo onde foi falho e o que precisa ser complementado. Isso para o primeiro e segundo ano do ensino médio.”

Para o terceiro ano, ela elogia uma solução discutida em alguns Estados, como Maranhão e São Paulo, que é a de criar um “quarto ano” do ensino médio, que seria opcional.

‘Não vale a pena’

“O governo joga atividades para nós e pede para fazermos. Mas você não aprende nada. Ninguém aprende nada”, diz Gabriel Dias, aluno de 17 anos de Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte.

Para repetir de ano, Gabriel está propositalmente deixando de acompanhar as aulas e de fazer os exercícios a distância. Ele diz ter tomado a decisão logo no início das aulas remotas, apesar de sua mãe não concordar.

“Ela acha que eu deveria estar fazendo, que não é válido eu perder um ano da minha vida. Mas respeita minha decisão”, diz ele. “Eu não acho que é um atraso, eu acho que é um adianto na minha vida. Eu vou estar enganando a mim mesmo se eu passar de ano agora.” 

“Não vou pagar de bom samaritano e dizer que se fosse para a escola aprenderia tudo. Eu não aprenderia tudo, mas aprenderia muito mais do que com o sistema de EAD”, diz ele, que defende o cancelamento do ano letivo para todos. 

“Não vale a pena me formar agora. Além de perder meu terceiro ano presencial, um que fica marcado na vida, passaria sem conteúdo nenhum, simplesmente passaria de ano.” Além disso, diz ele, não teria como passar no Enem. “É quase impossível.”

Essa decisão é compartilhada por Júlia, a aluna de 17 anos de Belo Horizonte que também tomou a decisão. Se antes sua rotina era acordar, ir direto para a escola e depois para o estágio em marketing, hoje, “por conta da quarentena”, diz, a estudante dorme tarde e acorda tarde.

“Já acordo praticamente indo trabalhar. Sinto que estou em função de trabalho. Estou em home office há cinco meses”, afirma.

Sobra pouco tempo para os estudos – e, de qualquer forma, ela diz ter dificuldades com o ensino remoto. “É meio complicado falar como estão sendo as aulas, porque não estamos tendo aulas. Existe uma aula de 20 minutos na televisão, só que é a mesma coisa que nada, não dá tempo de introduzir a matéria. Distribuem atividades, mas não conseguimos fazer porque não temos auxílio”, diz. “Não consigo aprender sozinha, preciso de um professor auxiliando. Para mim, é extremamente difícil.”

Ela também comenta sobre como a diferença entre o ensino público e privado deve causar maior desigualdade no Enem. “Eles têm preparação o ano todo, auxílio o ano todo, simulados. A gente não tem toda essa preparação, ainda mais agora.”

O governador de Minas, Romeu Zema (Novo) afirmou que as aulas presenciais no Estado devem voltar no segundo semestre do ano. A mãe de Júlia não achou que fosse seguro para ela voltar para a escola – o que deve confirmar a reprovação que ela já desejava.

Para Alessandra*, aluna de 18 anos do terceiro ano do Ensino Médio em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, tem sido “muito difícil” se concentrar em casa. “Eu não entendo nada com EAD. Não tenho suporte para estudar sozinha em casa. Passei a vida inteira estudando com professor do meu lado na escola. E aí, agora, do nada isso”, diz.

Ela também já tomou a decisão de reprovar. “No começo minha mãe ficou meio assim, mas depois falou que compreendia, que presencial é melhor.”

Seu nome é fictício – ela não quis ser identificada na reportagem.

No começo, as aulas estavam sendo passadas pela escola num blog, conta ela. Agora, migraram para o Google Classroom, um sistema da empresa feito para escolas. Para Alessandra, “ficou mais complicado”. “Eu nem entro, nem ativei as notificações porque eu fico louca. Eu sou nerd e fico com uma culpa dentro de mim”, diz.

“Sinto falta de aprender coisas novas e de fato entender o conteúdo. Agora só fico ansiosa porque não consigo entender aquilo. Tento procurar reforço no YouTube e também não entendo, não pego nada.”

Avaliação diagnóstica

A secretaria de Educação do Rio Grande do Sul diz que desde 1 de junho trabalha com aulas remotas na rede estadual, mediadas pelos educadores por meio da plataforma Google Sala de Aula, por redes sociais, e-mail ou telefone.

“As Aulas Remotas proporcionam ainda, por meio do Google Sala de Aula, o espelhamento de 37 mil turmas e a criação de mais de 300 mil ambientes virtuais.”

Segundo a secretaria, foi feito um mapeamento dos alunos que não tinham acesso à internet e equipamentos para acesso às aulas. Para estes, “a estrutura das escolas pode ser utilizada mediante agendamento prévio e respeitando todas as medidas de prevenção ao contágio pela covid-19”.

“Para aqueles estudantes sem nenhum acesso à tecnologia, os materiais impressos podem ser retirados nas escolas mediante agendamento prévio.”

A pasta diz também que alunos do terceiro ano do Ensino Médio recebem aulas preparatórias específicas para o Enem.

Já a secretaria de Educação de Minas Gerais informou que seu plano de ensino consiste das apostilas PET (Plano de Estudo Tutorado), “volumes mensais com atividades e conteúdos propostos de acordo com a carga horária semanal prevista de cada disciplina e ano de escolaridade”.

Além disso, há o programa de TV “Se Liga na Educação”, exibido pelos canais da Rede Minas (TV pública do Estado), pela TV Assembleia e pelo Youtube. O aplicativo Conexão Escola reúne os arquivos dos PETs, vídeos das aulas e um chat para interação entre alunos e professores.

A pasta afirmou também que há videoaulas que abordam especificamente o conteúdo do Enem, com cinco horas de programação e uma hora de programação ao vivo para interação com alunos.

Disse que no retorno das atividades presenciais, aplicará uma avaliação diagnóstica em toda a rede para traçar um plano de revisão para cada aluno. “Assim, será possível adotar estratégias pedagógicas direcionadas para cada situação.”

Por fim, a secretaria ressaltou que “mais de 97% dos alunos da rede estadual de ensino tiveram acesso, seja virtualmente ou de forma impressa, aos PETs”.

Segundo a pasta, o aplicativo Conexão Escola contabiliza mais de 1,3 milhão de downloads, e o programa Se Liga na Educação chega a cerca de 1,4 milhão de alunos por TV aberta.

“A média diária de visualizações no Youtube da emissora, que transmite o conteúdo do programa, chega a 700 mil por dia. O site estudeemcasa.educacao.mg.gov.br, que reúne todos os materiais de estudo não presencial ofertados, já possui mais de 22 milhões de acessos.”

Por Juliana Gragnani da BBC News Brasil em Londres.

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