O Ministério Público Federal denunciou o ex-médico legista José Manella Netto por ocultação de cadáver e falsidade ideológica. Integrante do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo durante a ditadura militar, ele é acusado de forjar o laudo necroscópico do militante político Carlos Roberto Zanirato, omitindo que a vítima havia sido submetida a intensas sessões de tortura. Zanirato morreu em 29 de junho de 1969, quando estava sob custódia de agentes da repressão e foi empurrado contra um ônibus que trafegava na Avenida Celso Garcia, na zona leste da capital paulista.
O laudo de Manella Netto, assinado em conjunto com o médico já falecido Orlando Brandão, corrobora a versão oficial de que o militante cometera suicídio ao saltar na frente do veículo. O documento, porém, oculta uma série de lesões que não poderiam ter sido causadas pelo impacto, mas por agressões anteriores. Embora ainda estivesse com as algemas partidas nos punhos e seu nome completo constasse da requisição de exame, Zanirato foi considerado um “desconhecido” no relatório do IML e posteriormente enterrado como indigente, assim como diversos outros opositores do regime militar ao longo da ditadura.
Zanirato era soldado em 1969, quando abandonou o Exército para integrar a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Após ser capturado pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, ele foi o primeiro militante sob custódia do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP) a desaparecer. Preso no dia 23 de junho, Zanirato sofreu torturas nos seis dias seguintes, até ser levado ao local onde teria um encontro com outro membro da VPR e acabou lançado contra o ônibus. Não houve perícia sobre o atropelamento nem fotos da ocorrência. Sequer um inquérito policial foi instaurado, como era obrigatório em casos como aquele.
“A entrada no IML com o nome verdadeiro e a saída como ‘desconhecido’ é prova incontestável de que houve conivência do denunciado [Manella Netto], a fim de ocultar as marcas de tortura sofridas pela vítima, bem como a sua verdadeira identidade”, destacou o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, autor da denúncia do MPF. “As marcas de tortura eram o motivo pelo qual os militares não queriam que o corpo fosse visto pelos familiares.”
Manella Netto chegou a ter o exercício profissional cassado após responder a um processo disciplinar no Conselho Regional de Medicina de São Paulo, em 1994. Ao longo do procedimento, o ex-médico admitiu que o atropelamento não poderia ser apontado como a causa de alguns ferimentos presentes no corpo de Zanirato e reconheceu que a vítima apresentava sinais de agressões sofridas antes do choque com o veículo.
O IML de São Paulo foi um dos órgãos que mais colaboraram com a repressão para dissimular as circunstâncias em que os opositores ao regime eram exterminados. O MPF ressalta que não cabe prescrição nem anistia à conduta de Manella Netto, uma vez que o crime foi cometido em um contexto de ataque sistemático e generalizado do Estado brasileiro contra a população. E mesmo que a prescrição fosse cabível neste caso, a contagem do prazo sequer teria começado e só passaria a correr a partir do momento em que se encerrasse a ocultação do cadáver, um crime que permanece em prática até hoje e perdurará enquanto o corpo de Zanirato não for localizado.
O número processual da denúncia é 5002620-24.2021.4.03.6181. A tramitação pode ser consultada aqui.
Leia a íntegra da denúncia do MPF
Por: Assessoria de Comunicação/Ministério Público Federal em São Paulo